O
RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA: COMO ESTAS
BALIZAS INFLUENCIAM A PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN
RESUMO
O
artigo examina a contribuição de Jacques Lacan para a psicanálise, enfatizando
seu apelo por um “retorno a Freud.” Lacan argumentava que a psicanálise
pós-freudiana se desviou dos princípios fundamentais de Freud, adotando uma
visão reducionista e adaptativa que negligenciava a importância da linguagem e
do inconsciente. As principais críticas de Lacan à psicanálise pós-freudiana
incluem: enrijecimento da técnica, negligência da linguagem, hipertrofia da
função do imaginário, ênfase excessiva na contratransferência, modelo
adaptativo e fortalecimento egóico. Lacan defende uma psicanálise que promova a
transformação subjetiva e a liberdade, em vez de apenas adaptá-la às normas
sociais. O artigo também discute a influência da psicanálise lacaniana no Brasil
após 1970.
PALAVRAS-CHAVE: retorno a Freud, linguagem, técnica
psicanalítica e psicanálise no Brasil.
O RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES
CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA
Jacques Lacan emerge no cenário
psicanalítico em um momento de transição, marcado pela crescente influência da
Escola Kleiniana. Contemporâneo de Freud, Lacan, apesar da proximidade
temporal, não integrou o círculo íntimo de Freud durante os últimos anos de
vida do fundador da psicanálise. Lacan propõe um retorno ao Complexo de Édipo,
porém com uma releitura que enfatiza a importância da função fraterna,
argumentando que a formulação clássica edipiana não aborda a dimensão do
fraterno na constituição psíquica do sujeito. Posteriormente, Lacan formula o
Estádio do Espelho como elemento crucial na construção do EU, inaugurando uma
nova perspectiva sobre a formulação da identidade e da subjetividade. Essa
ênfase na função fraterna e a posterior elaboração do Estádio do Espelho marcam
o início da trajetória de Lacan no campo psicanalítico, no qual retorna as
bases freudianas, mas reinterpreta e a complexifica a partir de um diálogo com
outras áreas do conhecimento, como a linguística e a filosofia.
Jacques Lacan direciona críticas à
psicanálise pós-freudiana, as quais justificam a necessidade de um retorno a
Freud. As principais problemáticas identificadas por Lacan são: enrijecimento
da técnica, perda da crítica de conceitos e procedimentos, aversão pelo campo
da linguagem, hipertrofia da função do imaginário e o papel da
contratransferência.
Essas críticas de Lacan à
psicanálise pós-freudiana evidenciam seu esforço em reorientar a psicanálise em
direção aos seus fundamentos, revitalizando o legado freudiano e promovendo um
retorno teórico e clínico.
A década de 1930 presencia a
ascensão da influência kleiniana na Associação Psicanalítica Internacional
(IPA). Em contraponto, a partir da década de 1950, Jacques Lacan inicia um
período de intensa crítica à instituição, culminando em profundo desacordo. É
nesse contexto que, em 1953, publica “Função e Campo da Fala e da Linguagem em
Psicanálise”, texto no qual questiona o enrijecimento da técnica psicanalítica.
Para Lacan, essa padronização esvazia a função do analista, substituindo-a por
uma série de procedimentos protocolares que limitam a singularidade do
tratamento e a escuta do sujeito.
No Seminário 3, "As Psicoses", Lacan postula que a
compreensão precipitada do analisando constitui uma forma de violência, pois a
elaboração de estratégias terapêuticas eficazes requer tempo e uma análise
cuidadosa dos elementos e táticas disponíveis. O retorno a Freud proposto por
Lacan se justifica pelo enrijecimento teórico da psicanálise pós-freudiana, a
qual, em contraste com a postura aberta e autocrítica de Freud, demonstrou
resistência à revisão e atualização de seus preceitos. As inúmeras notas de rodapé
presentes nos textos freudianos evidenciam sua constante busca por
aprimoramento e reformulação de suas ideias. Nesse sentido, Lacan se mantém
fiel ao espírito de Freud ao defender a revisão crítica e contínua dos
conceitos psicanalíticos, o que implica, paradoxalmente, em uma possível
"infidelidade" ao texto freudiano, na medida em que a fidelidade ao
movimento do pensamento exige questionamento e até mesmo oposição às
formulações originais, quando necessário.
A psicanálise pós-freudiana desviou-se do cerne da descoberta
freudiana, ignorando o papel fundamental da palavra e privilegiando abordagens
como o reducionismo biológico e o modelo biopsicossocial. No Seminário 1, Lacan
destaca a importância do "efeito" da palavra sobre a história e o
corpo, retomando a ênfase freudiana na linguagem como elemento central na
constituição do sujeito e na dinâmica do inconsciente. Para Lacan, o
psicanalista deve aprofundar seus conhecimentos sobre as funções da linguagem,
buscando o domínio da fala e aprimorando suas habilidades de escuta. Nesse
sentido, Lacan revisita obras essenciais de Freud, como "A Interpretação
dos Sonhos", "O Inconsciente" e "Psicopatologia da Vida
Cotidiana", a fim de fundamentar a importância da linguagem na teoria e na
prática psicanalíticas.
Lacan critica a psicanálise de sua
época por sua tendência à rigidez e dogmatismo, evidenciada na cristalização de
textos e conceitos tidos como inquestionáveis. Para ele, essa postura
transformava a psicanálise em um instrumento de dominação, distanciando-a de
sua função original de promover a liberdade do sujeito. Nesse contexto, o
retorno a Freud proposto por Lacan representa um esforço para recuperar a
essência crítica e subversiva da psicanálise. Ao analisar a Psicologia do Ego e
o uso da contratransferência, Lacan adverte sobre o risco de o ego do analista
interferir no processo analítico, obstaculizando o desenvolvimento do
analisando. Quando o "eu" do analista se manifesta na análise, o
"eu" do analisando pode ser ofuscado, impedindo a emergência do
sujeito e a elaboração de seus sintomas.
MOTIVOS DO SENTIDO DO RETORNO A
FREUD POR LACAN:
1) Desbiologização e
desnaturalização da psicanálise:
Um dos motivos que impulsionaram o retorno a Freud por Lacan
reside na necessidade de uma desbiologização e desnaturalização da psicanálise. Lacan se opõe à tendência, presente
na psicanálise pós-freudiana, de reduzir a experiência humana a seus aspectos
biológicos e instintivos, negligenciando a dimensão simbólica e linguística que
a constitui. Para realizar essa desbiologização, Lacan resgata a noção de falta
na obra de Freud, conferindo-lhe um papel central em sua releitura da
psicanálise. Embora Freud tenha explorado a falta em diversos momentos de sua
obra, Lacan a sistematiza e a torna um conceito fundamental para a compreensão
da subjetividade.
2)
Oposição a um modelo adaptativo da psicanálise:
Em contraposição a uma visão da psicanálise como um método
adaptativo, que visa integrar o indivíduo às normas e expectativas sociais,
Lacan recupera a concepção freudiana de uma psicanálise subversiva, que
questiona os modos de vida estabelecidos e promove a transformação subjetiva.
Freud, desde seus primeiros escritos, concebia a psicanálise como um
instrumento de ruptura com as convenções e moral vigentes, propondo uma análise
crítica dos mecanismos de repressão e alienação que impedem o sujeito de realizar
seus desejos e potencialidades. A psicanálise, portanto, não se limita a
adaptar o indivíduo à realidade social, mas busca transformar essa realidade
através da liberação do sujeito das amarras do inconsciente e das normas
sociais restritivas.
3)
Uma psicanálise para além do modelo do fortalecimento egóico:
Superando a perspectiva de uma psicanálise voltada ao
fortalecimento do ego, Lacan retoma a concepção freudiana de um ego em
constante embate com as forças do id, reconhecendo o caráter perturbador e
"nocivo" do inconsciente. Para Freud, não se trata de ignorar ou
reprimir as manifestações do inconsciente, mas de enfrentá-las e elaborá-las,
como expressa na frase "não há fuga para o que ataca de dentro".
Lacan, por sua vez, radicaliza essa perspectiva, argumentando que o
inconsciente, apesar de seu caráter desconcertante, contém uma verdade singular
do sujeito, que precisa ser escutada e integrada à sua experiência. O objetivo
da análise, portanto, não se reduz ao fortalecimento do ego, mas à construção
de um estilo próprio, que incorpore a "estranheza" do sujeito, mesmo
que ela seja disruptiva e conteste as normas estabelecidas.
4) O reposicionamento da técnica da
interpretação (da complementação de lacunas e da ressignificação para um
questionamento épico sobre o desejo)
Em contraste com a ideia de "ressignificar a própria
história", frequentemente associada a abordagens terapêuticas que buscam
reinterpretar o passado, a orientação lacaniana propõe uma análise que se
concentra na verdade do sujeito, tal como ela se apresenta no presente. A
ênfase recai sobre a escuta do discurso do paciente e a compreensão da
estrutura que sustenta seus sintomas, sem recorrer a reinterpretações ou
reconstruções históricas. Essa postura se diferencia da busca por
ressignificação, na medida em que prioriza a análise do presente e a
compreensão da dinâmica inconsciente que se manifesta no discurso e nas ações
do sujeito. O objetivo não é reescrever o passado, mas desvelar a lógica que o
estrutura e seus efeitos no presente.
5)
Introdução de uma concepção refinada do sujeito
Lacan concebe o inconsciente como pertencente à ordem do não
realizado, ou seja, como um conjunto de significantes que não se integram
plenamente à consciência e se manifestam de forma distorcida nos sonhos, atos
falhos e sintomas. Nessa perspectiva, a clínica psicanalítica não visa a uma
rememoração completa do passado, como se a simples recordação de um evento
traumático fosse suficiente para eliminar o sintoma. Tal concepção,
frequentemente associada à psicanálise, constitui um equívoco, pois ignora a complexidade
da dinâmica inconsciente.
Na clínica lacaniana, a mudança não ocorre por meio de um
"ato heroico" de rememoração, mas sim de forma gradual e contínua, à
medida que o sujeito se depara com as manifestações do seu inconsciente no
discurso. A análise não se resume à busca por uma "verdade
escondida", mas à construção de um novo modo de relação com a própria
história e com o desejo.
COMO ESTAS BALIZAS INFLUENCIAM A
PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN
A
psicanálise no Brasil após 1970: Depois de Lacan
Desde Freud
Segundo Marco Antônio Coutinho Jorge
(apud Santos, 2019, p.81) quando a
psicanálise lacaniana chega ao Brasil o cenário é bem parecido com aquele
encontrado na França por Lacan na década de 1950, quando então propõe um
retorno a Freud e a desbiologização da psicanálise promovida pela IPA. Havendo,
previsivelmente, reações contrárias a renovação da psicanálise, os mais antigos
e de outras orientações teóricas, consideravam a psicanálise lacaniana “[...]
esses jovens lacanianos que surgiam como irresponsáveis, além de perigosamente
desrespeitosos com a tradição vigente e, em última instância, destruidores da
psicanálise”. Outro elemento importante da renovação foi a presença desses
jovens lacanianos em programas de rádio, televisão e participação em atividades
acadêmicas e congressos. (Santos, 2019, p. 81-82)
No Brasil, a psicanálise lacaniana,
propõe uma renovação e uma visível abertura para
Santos (2019, p. 90) conclui que a
década de 1970 a psicanálise no Brasil depois de Lacan marca uma década que
coloca fim
CONCLUSÃO
Jacques Lacan em seu retorno a Freud
revitalizou a psicanálise ao enfatizar a importância da linguagem e do
simbólico na constituição do sujeito. Lacan criticou a psicanálise
pós-freudiana por sua tendência à biologização, ao reducionismo adaptativo e à hipertrofia
do imaginário, desviando-se do foco original na linguagem e no inconsciente.
Ele resgatou a dimensão ética e subversiva da psicanálise, promovendo a
liberdade do sujeito em detrimento da mera adaptação social. No Brasil, a
influência de Lacan democratizou o acesso à psicanálise, desafiando a hegemonia
da IPA e promovendo uma maior abertura teórica e clínica. O "retorno a
Freud" proposto por Lacan continua a inspirar e desafiar psicanalistas em
todo o mundo, garantindo a vitalidade e a relevância da psicanálise no século
XXI
REFERÊNCIAS
______, S. Obras Completas, v.5. Psicopatologia da vida cotidiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
______, S. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro:
Editora Zahar, 1985.
LACAN, J. O
Seminário, livro 1: Os escritos técnicos
de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
MILLAN, B. Difusão da psicanálise lacaniana no Brasil.
Disponível
em:<http://www2.uol.com.br/bettymilan/entrevistas/28-difusao.htm>. Acesso
em 23 de fev. 2014.
RAVANELLO,
T. Módulo I – Disciplina: Freud com
Lacan, Lacan com Freud. Aulas: 16 e 17 de agosto de 2014 e 27 e 28 de
setembro de 2024. Clínica Psicanalítica Lacaniana (Turma online 1). Londrina:
Instituto Espe, 2024.
SANTOS, L.
dos. A psicanálise no Brasil: antes
e depois de Lacan. Posições do Psicanalista nessa história. São Paulo: Editora
Zagodoni, 2019.
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