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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA: COMO ESTAS BALIZAS INFLUENCIAM A PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN

O RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA: COMO ESTAS BALIZAS INFLUENCIAM A PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN

 Isabel Perides

RESUMO

O artigo examina a contribuição de Jacques Lacan para a psicanálise, enfatizando seu apelo por um “retorno a Freud.” Lacan argumentava que a psicanálise pós-freudiana se desviou dos princípios fundamentais de Freud, adotando uma visão reducionista e adaptativa que negligenciava a importância da linguagem e do inconsciente. As principais críticas de Lacan à psicanálise pós-freudiana incluem: enrijecimento da técnica, negligência da linguagem, hipertrofia da função do imaginário, ênfase excessiva na contratransferência, modelo adaptativo e fortalecimento egóico. Lacan defende uma psicanálise que promova a transformação subjetiva e a liberdade, em vez de apenas adaptá-la às normas sociais. O artigo também discute a influência da psicanálise lacaniana no Brasil após 1970.

 

PALAVRAS-CHAVE: retorno a Freud, linguagem, técnica psicanalítica e psicanálise no Brasil.

 

O RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA

Jacques Lacan emerge no cenário psicanalítico em um momento de transição, marcado pela crescente influência da Escola Kleiniana. Contemporâneo de Freud, Lacan, apesar da proximidade temporal, não integrou o círculo íntimo de Freud durante os últimos anos de vida do fundador da psicanálise. Lacan propõe um retorno ao Complexo de Édipo, porém com uma releitura que enfatiza a importância da função fraterna, argumentando que a formulação clássica edipiana não aborda a dimensão do fraterno na constituição psíquica do sujeito. Posteriormente, Lacan formula o Estádio do Espelho como elemento crucial na construção do EU, inaugurando uma nova perspectiva sobre a formulação da identidade e da subjetividade. Essa ênfase na função fraterna e a posterior elaboração do Estádio do Espelho marcam o início da trajetória de Lacan no campo psicanalítico, no qual retorna as bases freudianas, mas reinterpreta e a complexifica a partir de um diálogo com outras áreas do conhecimento, como a linguística e a filosofia.

Jacques Lacan direciona críticas à psicanálise pós-freudiana, as quais justificam a necessidade de um retorno a Freud. As principais problemáticas identificadas por Lacan são: enrijecimento da técnica, perda da crítica de conceitos e procedimentos, aversão pelo campo da linguagem, hipertrofia da função do imaginário e o papel da contratransferência.

Essas críticas de Lacan à psicanálise pós-freudiana evidenciam seu esforço em reorientar a psicanálise em direção aos seus fundamentos, revitalizando o legado freudiano e promovendo um retorno teórico e clínico.

A década de 1930 presencia a ascensão da influência kleiniana na Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Em contraponto, a partir da década de 1950, Jacques Lacan inicia um período de intensa crítica à instituição, culminando em profundo desacordo. É nesse contexto que, em 1953, publica “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”, texto no qual questiona o enrijecimento da técnica psicanalítica. Para Lacan, essa padronização esvazia a função do analista, substituindo-a por uma série de procedimentos protocolares que limitam a singularidade do tratamento e a escuta do sujeito.

No Seminário 3, "As Psicoses", Lacan postula que a compreensão precipitada do analisando constitui uma forma de violência, pois a elaboração de estratégias terapêuticas eficazes requer tempo e uma análise cuidadosa dos elementos e táticas disponíveis. O retorno a Freud proposto por Lacan se justifica pelo enrijecimento teórico da psicanálise pós-freudiana, a qual, em contraste com a postura aberta e autocrítica de Freud, demonstrou resistência à revisão e atualização de seus preceitos. As inúmeras notas de rodapé presentes nos textos freudianos evidenciam sua constante busca por aprimoramento e reformulação de suas ideias. Nesse sentido, Lacan se mantém fiel ao espírito de Freud ao defender a revisão crítica e contínua dos conceitos psicanalíticos, o que implica, paradoxalmente, em uma possível "infidelidade" ao texto freudiano, na medida em que a fidelidade ao movimento do pensamento exige questionamento e até mesmo oposição às formulações originais, quando necessário.

A psicanálise pós-freudiana desviou-se do cerne da descoberta freudiana, ignorando o papel fundamental da palavra e privilegiando abordagens como o reducionismo biológico e o modelo biopsicossocial. No Seminário 1, Lacan destaca a importância do "efeito" da palavra sobre a história e o corpo, retomando a ênfase freudiana na linguagem como elemento central na constituição do sujeito e na dinâmica do inconsciente. Para Lacan, o psicanalista deve aprofundar seus conhecimentos sobre as funções da linguagem, buscando o domínio da fala e aprimorando suas habilidades de escuta. Nesse sentido, Lacan revisita obras essenciais de Freud, como "A Interpretação dos Sonhos", "O Inconsciente" e "Psicopatologia da Vida Cotidiana", a fim de fundamentar a importância da linguagem na teoria e na prática psicanalíticas.

Lacan critica a psicanálise de sua época por sua tendência à rigidez e dogmatismo, evidenciada na cristalização de textos e conceitos tidos como inquestionáveis. Para ele, essa postura transformava a psicanálise em um instrumento de dominação, distanciando-a de sua função original de promover a liberdade do sujeito. Nesse contexto, o retorno a Freud proposto por Lacan representa um esforço para recuperar a essência crítica e subversiva da psicanálise. Ao analisar a Psicologia do Ego e o uso da contratransferência, Lacan adverte sobre o risco de o ego do analista interferir no processo analítico, obstaculizando o desenvolvimento do analisando. Quando o "eu" do analista se manifesta na análise, o "eu" do analisando pode ser ofuscado, impedindo a emergência do sujeito e a elaboração de seus sintomas.

 

MOTIVOS DO SENTIDO DO RETORNO A FREUD POR LACAN:

1) Desbiologização e desnaturalização da psicanálise:

Um dos motivos que impulsionaram o retorno a Freud por Lacan reside na necessidade de uma desbiologização e desnaturalização da psicanálise. Lacan se opõe à tendência, presente na psicanálise pós-freudiana, de reduzir a experiência humana a seus aspectos biológicos e instintivos, negligenciando a dimensão simbólica e linguística que a constitui. Para realizar essa desbiologização, Lacan resgata a noção de falta na obra de Freud, conferindo-lhe um papel central em sua releitura da psicanálise. Embora Freud tenha explorado a falta em diversos momentos de sua obra, Lacan a sistematiza e a torna um conceito fundamental para a compreensão da subjetividade.

2) Oposição a um modelo adaptativo da psicanálise:

Em contraposição a uma visão da psicanálise como um método adaptativo, que visa integrar o indivíduo às normas e expectativas sociais, Lacan recupera a concepção freudiana de uma psicanálise subversiva, que questiona os modos de vida estabelecidos e promove a transformação subjetiva. Freud, desde seus primeiros escritos, concebia a psicanálise como um instrumento de ruptura com as convenções e moral vigentes, propondo uma análise crítica dos mecanismos de repressão e alienação que impedem o sujeito de realizar seus desejos e potencialidades. A psicanálise, portanto, não se limita a adaptar o indivíduo à realidade social, mas busca transformar essa realidade através da liberação do sujeito das amarras do inconsciente e das normas sociais restritivas.

3) Uma psicanálise para além do modelo do fortalecimento egóico:

Superando a perspectiva de uma psicanálise voltada ao fortalecimento do ego, Lacan retoma a concepção freudiana de um ego em constante embate com as forças do id, reconhecendo o caráter perturbador e "nocivo" do inconsciente. Para Freud, não se trata de ignorar ou reprimir as manifestações do inconsciente, mas de enfrentá-las e elaborá-las, como expressa na frase "não há fuga para o que ataca de dentro". Lacan, por sua vez, radicaliza essa perspectiva, argumentando que o inconsciente, apesar de seu caráter desconcertante, contém uma verdade singular do sujeito, que precisa ser escutada e integrada à sua experiência. O objetivo da análise, portanto, não se reduz ao fortalecimento do ego, mas à construção de um estilo próprio, que incorpore a "estranheza" do sujeito, mesmo que ela seja disruptiva e conteste as normas estabelecidas.

4) O reposicionamento da técnica da interpretação (da complementação de lacunas e da ressignificação para um questionamento épico sobre o desejo)

Em contraste com a ideia de "ressignificar a própria história", frequentemente associada a abordagens terapêuticas que buscam reinterpretar o passado, a orientação lacaniana propõe uma análise que se concentra na verdade do sujeito, tal como ela se apresenta no presente. A ênfase recai sobre a escuta do discurso do paciente e a compreensão da estrutura que sustenta seus sintomas, sem recorrer a reinterpretações ou reconstruções históricas. Essa postura se diferencia da busca por ressignificação, na medida em que prioriza a análise do presente e a compreensão da dinâmica inconsciente que se manifesta no discurso e nas ações do sujeito. O objetivo não é reescrever o passado, mas desvelar a lógica que o estrutura e seus efeitos no presente.

5) Introdução de uma concepção refinada do sujeito 

Lacan concebe o inconsciente como pertencente à ordem do não realizado, ou seja, como um conjunto de significantes que não se integram plenamente à consciência e se manifestam de forma distorcida nos sonhos, atos falhos e sintomas. Nessa perspectiva, a clínica psicanalítica não visa a uma rememoração completa do passado, como se a simples recordação de um evento traumático fosse suficiente para eliminar o sintoma. Tal concepção, frequentemente associada à psicanálise, constitui um equívoco, pois ignora a complexidade da dinâmica inconsciente.

Na clínica lacaniana, a mudança não ocorre por meio de um "ato heroico" de rememoração, mas sim de forma gradual e contínua, à medida que o sujeito se depara com as manifestações do seu inconsciente no discurso. A análise não se resume à busca por uma "verdade escondida", mas à construção de um novo modo de relação com a própria história e com o desejo.

COMO ESTAS BALIZAS INFLUENCIAM A PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN

A psicanálise no Brasil após 1970: Depois de Lacan

Desde Freud, os laços começaram a se estabelecer com os jovens médicos interessados em psicanálise. E no Brasil não foi diferente. O pensamento psicanalítico começa a tomar vulto no Brasil não só pela inserção do pensamento lacaniano, mas, também pela chegada dos psicanalistas argentinos exilados pela ditadura militar: “[...] contrários ao regime, diferentemente dos psicanalistas brasileiros que, em grande maioria, mostravam-se neutros, apolíticos ou, pior ainda, em alguns casos a serviço da ditadura militar que por aqui imperava.” (Santos, 2019, p. 79-81)

Segundo Marco Antônio Coutinho Jorge (apud Santos, 2019, p.81) quando a psicanálise lacaniana chega ao Brasil o cenário é bem parecido com aquele encontrado na França por Lacan na década de 1950, quando então propõe um retorno a Freud e a desbiologização da psicanálise promovida pela IPA. Havendo, previsivelmente, reações contrárias a renovação da psicanálise, os mais antigos e de outras orientações teóricas, consideravam a psicanálise lacaniana “[...] esses jovens lacanianos que surgiam como irresponsáveis, além de perigosamente desrespeitosos com a tradição vigente e, em última instância, destruidores da psicanálise”. Outro elemento importante da renovação foi a presença desses jovens lacanianos em programas de rádio, televisão e participação em atividades acadêmicas e congressos. (Santos, 2019, p. 81-82)

No Brasil, a psicanálise lacaniana, propõe uma renovação e uma visível abertura para o acesso a um maior número de pessoas à psicanálise, quer seja como analisando, quer seja como analista.

Santos (2019, p. 90) conclui que a década de 1970 a psicanálise no Brasil depois de Lacan marca uma década que coloca fim à hegemonia de uma Psicanálise única, ditada pela IPA e sua representante oficial no Brasil, a Sociedade Brasileira de Psicanálise, como seu modo quase que inflexível de concepção de formação, acesso e, em especial, o reconhecimento daqueles que poderiam ser chamados de psicanalistas. Para Santos (2019, p. 125), a proposta lacaniana, em 1970, chega ao Brasil como forma de tornar a psicanálise um pouco mais acessível.

CONCLUSÃO

Jacques Lacan em seu retorno a Freud revitalizou a psicanálise ao enfatizar a importância da linguagem e do simbólico na constituição do sujeito. Lacan criticou a psicanálise pós-freudiana por sua tendência à biologização, ao reducionismo adaptativo e à hipertrofia do imaginário, desviando-se do foco original na linguagem e no inconsciente. Ele resgatou a dimensão ética e subversiva da psicanálise, promovendo a liberdade do sujeito em detrimento da mera adaptação social. No Brasil, a influência de Lacan democratizou o acesso à psicanálise, desafiando a hegemonia da IPA e promovendo uma maior abertura teórica e clínica. O "retorno a Freud" proposto por Lacan continua a inspirar e desafiar psicanalistas em todo o mundo, garantindo a vitalidade e a relevância da psicanálise no século XXI

REFERÊNCIAS

 

FREUD, S. Obras Completas, v.4. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

______, S. Obras Completas, v.5. Psicopatologia da vida cotidiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 

______, S. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1985.

JORGE, M. A. C. Jacques Lacan e a renovação da clínica psicanalítica. Sobre o impacto de seu ensino no Brasil. In: JORGE, M.A.C. (org.) Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, p.195-204. 

LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.

LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

MILLAN, B. Difusão da psicanálise lacaniana no Brasil. Disponível em:<http://www2.uol.com.br/bettymilan/entrevistas/28-difusao.htm>. Acesso em 23 de fev. 2014.

RAVANELLO, T. Módulo I – Disciplina: Freud com Lacan, Lacan com Freud. Aulas: 16 e 17 de agosto de 2014 e 27 e 28 de setembro de 2024. Clínica Psicanalítica Lacaniana (Turma online 1). Londrina: Instituto Espe, 2024.

SANTOS, L. dos. A psicanálise no Brasil: antes e depois de Lacan. Posições do Psicanalista nessa história. São Paulo: Editora Zagodoni, 2019.

 

 




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