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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Reflexões sobre Corpo e Subjetividade na Clínica Psicanalítica Contemporânea sob a Perspectiva Lacaniana

 

Reflexões sobre Corpo e Subjetividade na Clínica Psicanalítica Contemporânea sob a Perspectiva Lacaniana 

Isabel Perides

[...] qualquer que seja sua causa, inclusive a imaginação, as dores em si nem por isso são menos reais ou menos violentas. (Freud, 1905)

 

Para Lacan (1999, Seminário 5: As formações do inconsciente), o corpo pode ser entendido como um lugar onde o sujeito se inscreve no simbólico. Na posição do analista, isso implica escutar o que o corpo “fala” antes das palavras do paciente. Um sintoma corporal pode ser “uma mensagem” do inconsciente que o analista deve ajudar a decifrar, contudo, deve ter o cuidado de não reduzi-lo ao simbólico, ignorando possíveis causas orgânicas[1].

No Seminário 20 (Mais, ainda, 1985), Lacan aborda o conceito de gozo. O gozo escapa à simbolização, um excesso que se aloja no corpo e que não se submete completamente à linguagem. Na clínica atual, diante de fenômenos como a psicossomática, as automutilações e as intervenções corporais (tais como cirurgias e tatuagens), o analista deve estar atento a como o sujeito lida com esse gozo, que pode ser uma forma de sofrimento ou sustentação subjetiva. A função do analista é facilitar o diálogo para que o sujeito possa articular algo sobre esse excesso, sem tentar eliminá-lo.

Lacan trabalha com o conceito de sinthoma no Seminário 23 (O Sinthoma, 2007). Para Lacan, o sinthoma pode se manifestar no corpo como uma forma de o sujeito se constituir frente ao vazio ou à desordem psíquica. Para o analista, o desafio é não tratar o sinthoma como algo a ser eliminado, mas como algo a ser transformado ou ressignificado. Na atualidade, isso pode ressoar em transtornos alimentares e práticas de modificação corporal extrema.

No livro Psicanálise e Psicossomática: Casos clínicos, construções (Soares et al., 2015), a psicossomática e a clínica do corpo, ao conectar a teoria lacaniana à prática clínica, ajudam a compreender que os fenômenos psicossomáticos são tentativas do sujeito de lidar com algo que não pode ser simbolizado. Na clínica contemporânea, o analista se depara com o estresse, as pressões sociais e as demandas de perfeição corporal (superego) que impactam o corpo do sujeito. O analista deve auxiliar a construção de uma narrativa que dê sentido ao sofrimento corporal, permitindo que o sujeito encontre outras vias de expressão.

Gonçalves (2022, Corpo e Clínica Psicanalítica) destaca o aumento de demandas clínicas em que o corpo se torna um meio de expressão do sofrimento psíquico. Propõe um mapeamento conceitual que articula o sinthoma em duas dimensões: a simbólica (como mensagem inconsciente, ecoando Freud e Lacan) e a pulsional (como modo de gozo ligado ao real).

Gonçalves (2022) enfatiza a necessidade de o analista reconhecer essas manifestações como paradigmáticas para reequacionar a clínica. Para ela, há a ideia de que o sofrimento corporal contemporâneo exige do analista uma escuta que vá para além do tradicional, considerando os impactos de contextos sociais traumáticos.

Entre a fina simbiose do psíquico e das manifestações somáticas esclarece Gonçalves:

É sabido que implicações psíquicas podem acarretar o surgimento e a permanência de manifestações somáticas, porém Freud (1905b) ao indicar a mútua relação entre o psíquico e o somático salienta que o somático também é capaz de afetar o psíquico. Assim, sendo, uma doença orgânica, por exemplo, pode acarretar reações psicopatológicas significativas. Não é diferente com as repercussões da dor física sobre o psíquico, tal como ele demonstrou no texto sobre o narcisismo que nos leva a crer que a dor é um dos destinos da pulsão. (Gonçalves, 2022, p.113)

 

Em contextos contemporâneos marcados por novas formas de sofrimento corporal (transtornos psicossomáticos, modificações corporais, questões de gênero), o analista deve olhar para o corpo como um lugar onde o inconsciente se inscreve (escuta do corpo). A função do analista caminha no sentido de trabalhar para que o sujeito possa se relacionar de forma menos dolorida com o gozo e transformar o sinthoma em algo que o sustente (sustentar o gozo e o sinthoma). As redes sociais, padrões de beleza e medicalização colocam o corpo sob intensa pressão social, e o analista deve considerar como essas demandas afetam a subjetividade e se manifestam no corpo, ajudando o sujeito a se posicionar frente a elas.

O analista não impõe soluções, mas opera como um suporte para que o sujeito descubra seu próprio caminho em relação ao corpo e à subjetividade, respeitando a singularidade de cada um.

No contexto do ensino de Lacan, os já mencionados Seminários 5, 20 e 23 indicam que o corpo é um campo de inscrição do inconsciente, atravessado pelo gozo e pelo sinthoma. Gonçalves (2022) complementa ao apontar o sinthoma enquanto acontecimento do corpo e uma resposta singular a desamparos ou traumas, muitas vezes agravados pela contemporaneidade (pressões sociais, pandemia etc.). Gonçalves destaca a influência de ambientes da cultura digital não empáticos e que exige do analista considerar como essas dinâmicas afetam a subjetividade corporal.

Entre os casos clássicos de Freud, o caso Dora (Ida Bauer) é particularmente relevante para as reflexões sobre o corpo e a subjetividade na clínica lacaniana contemporânea. Dora apresenta sintomas corporais que expressam conflitos inconscientes, e sua análise por Freud ilustra a relação entre o corpo, a subjetividade e o papel do analista, ecoando os conceitos lacanianos discutidos até aqui.

Dora apresenta sintomas corporais (tosse nervosa, afonia) que Freud interpreta como expressões de conflitos inconscientes. Na atualidade, sintomas corporais como os de Dora podem ser comparados a fenômenos psicossomáticos ou transtornos que o analista deve decifrar, depois de excluída a possibilidade de causas orgânicas. A tosse de Dora pode ser lida como uma manifestação de gozo, um excesso que se aloja no corpo e que Dora não consegue simbolizar plenamente. Embora Freud não use o termo “sinthoma” (Lacan, 2007), a tosse de Dora funciona como um mecanismo que a sustenta frente a seus conflitos, como a relação com o pai e os desejos reprimidos.

O caso Dora em Fragmento da Análise de um Caso de Histeria”, publicado por Freud em 1905. Nas palavras de Freud:

Sem dúvida este caso clínico, tal como esbocei até agora, não perece em seu conjunto digno de ser comunicado. Trata-se de uma “petite hystérie” com os mais comuns de todos os sintomas somáticos e psíquicos: dispneia, tussis nervosa, afonia e possivelmente enxaquecas, junto com depressão, insociabilidade histérica e um taedium vitae que provavelmente não era muito levado a sério. (Freud, 1996 [1905], p. 33)

 

Dora vive em um contexto repressivo, a Viena do início do século XX, onde seu corpo expressa o que ela não pode dizer, muito semelhante aos fenômenos psicossomáticos discutidos na atualidade. Na atualidade, as pressões sociais, ideias de beleza e cultura digital também geram sintomas corporais, como aponta Gonçalves (2022).

Freud, ao analisar Dora, tenta interpretar os sintomas corporais, mas sua abordagem esbarra em uma transferência mal manejada. Lacan enfatiza a importância de o analista sustentar a escuta e trabalhar com a transferência sem impor interpretações. O próprio Freud, em seu Posfácio do caso Dora avalia uma transferência mal manejada:

Fui obrigado a falar de transferência porque somente através desse fator pude esclarecer as particularidades da análise de Dora. O que constitui seu grande mérito e que a fez parecer adequada para uma primeira publicação introdutória, a saber, sua transferência incomum, está intimamente ligado a seu grande defeito, que levou a sua interrupção prematura. Não consegui dominar a tempo a transferência; graças à solicitude com que Dora punha à minha disposição no tratamento uma parte do material patogênico, esqueci a precaução de estar atento aos primeiros sinais de transferência que se preservava com outra parte do mesmo material, ainda ignorada por mim. (Freud, 1996 [1905], p. 112- 113; grifo nosso)

 

Georges Bataille (1897-1962) foi um pensador que dialogou profundamente com a psicanálise. Suas ideias sobre o excesso, o erotismo e a transgressão ressoam com os conceitos lacanianos discutidos nos seminários mencionados, e sua vida e obra podem ser analisadas sob a perspectiva da clínica contemporânea.

Bataille (2023) explorou intensamente a relação entre o corpo e o excesso em suas obras, como em O Erotismo (1957), onde discute o corpo como um campo de experiência do limite. Para Bataille, o corpo é o lugar onde se experimenta o que está para além da utilidade ou da razão. Ele, com sua obsessão pelo excesso, exemplifica um sujeito que viveu intensamente essa relação. O analista contemporâneo deve ajudar o sujeito a articular esse gozo, sem eliminá-lo, permitindo que o sujeito encontre formas menos destrutivas de expressão.

Bataille entende o corpo como o lugar de ruptura que escapa à linguagem, o que dialoga com a ideia de Lacan (1999, Seminário 5) de que o inconsciente se manifesta no corpo por meio de formações como o sintoma. Na clínica contemporânea, o analista deve escutar essas manifestações corporais (psicossomática, transtornos corporais etc.) como mensagens do inconsciente, algo que Bataille exemplifica com sua própria vida, marcada por sintomas físicos (angústia, insônia etc.) que refletiam conflitos internos.

O “excesso” que Bataille descreve pode ser lido como um sinthoma, uma forma de lidar com o que é “insuportável” em sua subjetividade. No Seminário 23 (2007), Lacan propõe que o sinthoma é uma intervenção singular que sustenta o sujeito, e Bataille encontrou na escrita e na transgressão uma forma de se sustentar. Na clínica contemporânea, o analista trabalha para que o sujeito transforme seu sinthoma em algo que o sustente de maneira menos sofrida.

Bataille conecta o corpo ao “íntimo e insuportável”, o que ressoa com os fenômenos psicossomáticos discutidos em Psicanálise e Psicossomática (Soares et al., 2015) – o corpo como resposta a algo que não pode ser simbolizado. Na atualidade, como Gonçalves (2022) aponta em Corpo e Clínica Psicanalítica, o corpo reflete desamparos e traumas sociais (pressões da cultura digital), e Bataille, vivendo em um “contexto de pós-guerra”, também teve seu corpo marcado pelas tensões de seu tempo.

Com Bataille (2023) podemos refletir que o erotismo é uma atividade que rompe os limites da subjetividade, levando o corpo a uma experiência de dissolução que pode se transforme em sofrimento. Essa tensão, se não for acolhida, pode se converter em uma doença ou em mal-estar físico que o sujeito não explica.

 

Considerações finais

A clínica psicanalítica contemporânea, sob a perspectiva de Lacan e com base nos livros analisados, revela o corpo como um campo onde se inscreve o inconsciente, o gozo e o sinthoma, refletindo a complexa relação com a subjetividade. É possível pensar que fenômenos como a psicossomática, automutilações e práticas corporais extremas são expressões do sujeito frente a desamparos modernos como pressões sociais e traumas. O analista, nesse contexto, deve “escutar o corpo” decifrando suas mensagens e ajudando o sujeito a ressignificar seu sofrimento.

 

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.

FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. VII.

GONÇALVES, Gesianni Amaral. Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2022.

GONÇALVES, Gesianni Amaral. Da linguagem ao corpo: litorais. 2024. Disciplina (online) ministrada no Curso de Pós-graduação: Clínica Psicanalítica Lacaniana, ESPE.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Vera Ribeiro; revisão de Marcus André Vieira. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de M. D. Magno. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sergio Laia; revisão de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

SOARES, Ana Maria [et al.] (Org.). Psicanálise e psicossomática: casos clínicos, construções. São Paulo: Escuta, 2015.

 



[1] “Vários autores apontam para a importância da função mediadora da psicossomática psicanalítica na promoção do diálogo entre a clínica médica e a psicanalítica, potencializando o espaço da interdisciplinariedade. Convidando o médico a sintonizar com o valor da rede simbólica e representativa do paciente e suas implicações na organização e desorganizações do psicossoma, psicossomática psicanalítica amplia sua capacidade de escuta, de compreensão etiológica dos sintomas e as possibilidades de intervenção na prática médica. (Soares, et.al., 2015, p.18)

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