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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

ANÁLISE PSICANALÍTICA DA SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA A PARTIR DE LACAN, SEXUALIDADE, NOVOS SINTOMAS E PSICOPATOLOGIA

 

ANÁLISE PSICANALÍTICA DA SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA A PARTIR DE LACAN, SEXUALIDADE, NOVOS SINTOMAS E PSICOPATOLOGIA

                                                                                                                   Isabel Perides

A psicanálise, a partir de Jacques Lacan, oferece um arcabouço teórico para compreender a subjetividade contemporânea. Esta análise busca articular a sexualidade, os novos sintomas e a psicopatologia com o ensino lacaniano, atendendo ao convite de Lacan para que os psicanalistas localizem a subjetividade no tempo atual.

 

1. Sexualidade e Sexuação na Clínica Contemporânea

Lacan reformulou o conceito de sexualidade ao introduzir a sexuação, que transcende a biologia. Ele propôs que a subjetividade se estrutura a partir de posições distintas em relação ao falo e ao gozo. O lado masculino se submete à castração e ao significante fálico, enquanto o lado feminino se abre a um gozo do Outro que não é totalmente capturado pela linguagem.

A psicanálise lacaniana distingue a sexualidade, que é pulsional, da sexuação, que se refere à posição do sujeito em relação à diferença e sua inscrição no simbólico. Na contemporaneidade, a fluidez das identidades de gênero e a multiplicidade das expressões sexuais desafiam as categorias binárias. Essa desconstrução dos ideais de gênero rigidamente impostos leva a uma diversificação das formas de gozo e a uma complexidade na maneira como os indivíduos se posicionam frente ao Outro e ao desejo. A ênfase lacaniana de que "não há uma completude ou harmonia natural entre os sexos" ajuda a entender como a subjetividade lida com a falta estrutural. A multiplicidade de identificações de gênero reflete tentativas de nomear o impossível da relação sexual, o que Lacan chama de sinthoma, uma solução singular para o sujeito lidar com a falta.

Lacan mostra que a não complementaridade entre os sexos significa que não há uma forma simbólica que uma homem e mulher. Ele propõe duas fórmulas de gozo, masculina e feminina, que não são simétricas, e cada sujeito se inscreve em uma delas a partir de uma posição subjetiva, não biológica. A sexualidade contemporânea nos convida a pensar a subjetividade como menos amarrada a normas universais e mais atravessada por escolhas singulares de gozo e identificação.

A psicanalista Myrna Agra Maracajá (2025) explora essa lógica lacaniana, vinculando-a à fluidez das identidades contemporâneas. Ela enfatiza que essas posições sexuais não são biológicas, mas uma "posição subjetiva diante do gozo". Maracajá (2025) discute como as mudanças sociais e culturais afetam a inscrição dos sujeitos nas posições sexuadas e como isso se reflete nas formas de gozo e nas relações contemporâneas.

2. A Problemática dos Novos Sintomas

O termo “novos sintomas”, já popularizado, reflete as manifestações de sofrimento psíquico da sociedade contemporânea. Questões como transtornos alimentares, automutilação, burnout e depressões atípicas são exemplos de novos arranjos sintomáticos. Esses sintomas revelam a relação do sujeito com o excesso de gozo em uma sociedade marcada pelo imperativo capitalista de "gozar mais", uma ideia de que Lacan relaciona no Seminário 17, O avesso da psicanálise.

Na clínica atual, o declínio da função paterna resulta em sujeitos que buscam no real (corpo, substância, tecnologia) uma forma de lidar com a angústia. Isso revela uma subjetividade fragmentada, que responde à precariedade dos laços sociais e ao individualismo. A psicanálise, na atualidade, oferece um espaço para o sujeito articular sua singularidade, transformando o sintoma em sinthoma.

Os sintomas contemporâneos apontam para uma fragilidade dos laços sociais e um esvaziamento do sentido. O sujeito busca preencher um vazio existencial através de objetos e práticas que oferecem um gozo imediato e efêmero. A psicanálise, ao invés de simplesmente classificar esses sintomas, busca entender a lógica subjacente a eles. Esses “novos sintomas” apontam para uma subjetivação desamparada, em que o sintoma não está mais articulado a um saber inconsciente, mas é vivido como um sofrimento bruto, real, sem sentido simbólico. Isso exige novas formas de escuta e intervenção clínica, voltadas para a estabilização do gozo do sujeito.

Maracajá (2025) trata desses sintomas como respostas aos impasses do discurso capitalista e à fragilização dos laços simbólicos. Sua abordagem compreende que esses "novos sintomas" são respostas do sujeito ao real da época, que inclui a exigência de performance, a cultura do consumo e a precarização dos laços sociais.

A clínica exemplifica essa manifestação. Uma analisanda, por exemplo, manifesta ansiedade e angústia no corpo, com um choro que a paciente não compreende e tenta controlar, onde o corpo expressa o que a palavra não consegue alcançar. A dor na cervical de uma outra analisanda, associada ao estresse do trabalho, é outro exemplo de como o sintoma se manifesta no corpo, em um tempo em que o estresse e a performance (sujeito performático) são demandas constantes.

3. Psicopatologia e Subjetividade

A psicopatologia, sob a perspectiva lacaniana, não se limita a diagnosticar transtornos. Ela investiga como o sujeito se posiciona frente ao Outro, explorando o campo da linguagem e do desejo. Lacan propõe que a subjetividade emerge na tensão entre o simbólico, o imaginário e o real. As mudanças sociais, como a globalização e a digitalização, enfraquecem as referências simbólicas, e a psicopatologia reflete esse impacto.

Fenômenos como ansiedade generalizada ou a dificuldade em sustentar laços amorosos apontam para um sujeito que enfrenta a ausência de garantias absolutas do Outro. Lacan convida os psicanalistas a escutar o sujeito além dos rótulos diagnósticos, reconhecendo que a psicopatologia contemporânea expressa tentativas de lidar com o real traumático. A psicopatologia se torna, nesse contexto, uma ferramenta para compreender a estrutura do sofrimento psíquico.

Ao analisar os novos sintomas, a psicanálise vai além da superfície para investigar operações psíquicas subjacentes, como a falta na castração simbólica e a dificuldade de construir um sentido para a existência. A psicopatologia contemporânea deve considerar as particularidades da época, como o discurso capitalista e a cultura do excesso. É crucial que o psicanalista compreenda a estrutura que sustenta o sintoma e a função que ele desempenha na economia psíquica do sujeito.

Na contemporaneidade, em que os discursos médicos e psiquiátricos tendem a classificar o sujeito com rótulos como TDAH ou borderline, a psicanálise propõe um retorno à escuta da singularidade. A psicopatologia, para a psicanálise, é um instrumento para localizar a posição do sujeito em relação ao seu gozo, à sua fala e à sua história, e não um manual de etiquetas diagnósticas.

Na clínica, a psicopatologia se manifesta como uma forma de compreender a estrutura subjetiva do sofrimento. Uma analisanda, por exemplo, demonstra a dificuldade em nomear seus sentimentos, o que pode ser entendido como uma defesa contra a dor emocional. A paciente parece ter desenvolvido um “falso self” para se adaptar a um ambiente familiar disfuncional, o que pode ter contribuído para sua ansiedade. Outra analisanda enfrenta a crise da meia-idade, com a busca por validação externa e a percepção de um conflito entre um “eu antigo” e um “eu novo”. Ambas as pacientes, cada uma a seu modo, demonstram uma desconexão entre o que sentem e o que conseguem expressar verbalmente.

4. A Subjetividade Contemporânea e o Convite de Lacan

Lacan convida os psicanalistas a se manterem atentos à singularidade do sujeito. A subjetividade contemporânea, marcada pela fragmentação, pluralidade de gozos e dificuldade de inscrição no simbólico, exige uma psicanálise que acolha o que é novo e singular. A sexualidade e a sexuação mostram como o sujeito se posiciona frente à falta; os novos sintomas revelam as estratégias para lidar com o excesso de gozo; e a psicopatologia aponta para a necessidade de reinventar os laços com o Outro.

A psicanálise lacaniana nos ajuda a localizar a subjetividade ao oferecer um método para escutar o sujeito em sua relação com o real, o simbólico e o imaginário. Isso permite que o sujeito construa, na análise, um saber sobre seu gozo e sua existência, especialmente em uma era de incertezas. O sujeito busca, por meio do sinthoma, uma maneira de fazer laços com o mundo.

Ao integrar as perspectivas da sexualidade e sexuação, a problemática dos novos sintomas e a psicopatologia, podemos compreender as forças que moldam a subjetividade contemporânea e as novas formas de sofrimento que emergem. O psicanalista, ao se manter atento a essas transformações, pode oferecer um espaço de escuta que possibilite ao sujeito reelaborar seu gozo e encontrar novas balizas para sua subjetividade.

Lacan convida os psicanalistas a lerem os sintomas do seu tempo, escutando a singularidade de cada sujeito em relação com os discursos contemporâneos. A subjetividade de hoje está marcada por:

·                     A crise das referências simbólicas tradicionais (pai, família, autoridade).

·                     O excesso de imagens e informações (o gozo do olhar e da exposição).

·                     A exigência de gozo imediato e desempenho constante (discurso capitalista).

·                     A busca por identidade e pertencimento em um mundo fluido e fragmentado.

A clínica psicanalítica contemporânea, ao se guiar por esses conceitos, oferece uma escuta atenta à singularidade do sujeito. O sofrimento, manifestado como angústia, choro, estresse ou inquietação, está intrinsecamente ligado a uma subjetividade fragmentada, que lida com a falta de referências simbólicas e a pressão por performance. O psicanalista, portanto, não busca um diagnóstico classificatório, mas um caminho para que o sujeito reelabore seu gozo e construa um novo sentido para sua existência. 

Ao nos debruçarmos sobre a sexualidade, os novos sintomas e a psicopatologia sob a lente lacaniana, percebemos que o sofrimento contemporâneo não e apenas uma manifestação individual, mas um reflexo da nossa época. A psicanálise, portanto, não busca rótulos diagnósticos, mas sim um caminho para que cada um possa reelaborar seu gozo e encontrar um novo sentido para a sua existência. Em um mundo que exige performance e gozo imediato, a clínica psicanalítica deve oferecer um espaço acolhedor para que o sujeito possa se reconectar com a sua singularidade, construir laços significativos e encontrar balizas para a sua subjetividade.

REFERÊNCIAS

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de M. D. Magno. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

______, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por J.-A. Miller. Tradução de A. Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

MARACAJÁ, M. A. Pulsão e sexualidade: cartografias Sexualidade e clínica psicanalítica. Disciplina (online, 2025) ministrada no Curso de Pós-graduação: Clínica Psicanalítica Lacaniana, ESPE.

______, M. A. Os gozos e a sexuação na clínica lacaniana. Disciplina (online, 2025) ministrada no Curso de Pós-graduação: Clínica Psicanalítica Lacaniana, ESPE.

______, M. A. Sexualidade e clínica psicanalítica. Disciplina (online, 2025) ministrada no Curso de Pós-graduação: Clínica Psicanalítica Lacaniana, ESPE.

______, M. A. Gênero e sua atualidade: convergências e divergências com a Psicanálise. Disciplina (online, 2025) ministrada no Curso de Pós-graduação: Clínica Psicanalítica Lacaniana, ESPE.

 

Reflexões sobre Corpo e Subjetividade na Clínica Psicanalítica Contemporânea sob a Perspectiva Lacaniana

 

Reflexões sobre Corpo e Subjetividade na Clínica Psicanalítica Contemporânea sob a Perspectiva Lacaniana 

Isabel Perides

[...] qualquer que seja sua causa, inclusive a imaginação, as dores em si nem por isso são menos reais ou menos violentas. (Freud, 1905)

 

Para Lacan (1999, Seminário 5: As formações do inconsciente), o corpo pode ser entendido como um lugar onde o sujeito se inscreve no simbólico. Na posição do analista, isso implica escutar o que o corpo “fala” antes das palavras do paciente. Um sintoma corporal pode ser “uma mensagem” do inconsciente que o analista deve ajudar a decifrar, contudo, deve ter o cuidado de não reduzi-lo ao simbólico, ignorando possíveis causas orgânicas[1].

No Seminário 20 (Mais, ainda, 1985), Lacan aborda o conceito de gozo. O gozo escapa à simbolização, um excesso que se aloja no corpo e que não se submete completamente à linguagem. Na clínica atual, diante de fenômenos como a psicossomática, as automutilações e as intervenções corporais (tais como cirurgias e tatuagens), o analista deve estar atento a como o sujeito lida com esse gozo, que pode ser uma forma de sofrimento ou sustentação subjetiva. A função do analista é facilitar o diálogo para que o sujeito possa articular algo sobre esse excesso, sem tentar eliminá-lo.

Lacan trabalha com o conceito de sinthoma no Seminário 23 (O Sinthoma, 2007). Para Lacan, o sinthoma pode se manifestar no corpo como uma forma de o sujeito se constituir frente ao vazio ou à desordem psíquica. Para o analista, o desafio é não tratar o sinthoma como algo a ser eliminado, mas como algo a ser transformado ou ressignificado. Na atualidade, isso pode ressoar em transtornos alimentares e práticas de modificação corporal extrema.

No livro Psicanálise e Psicossomática: Casos clínicos, construções (Soares et al., 2015), a psicossomática e a clínica do corpo, ao conectar a teoria lacaniana à prática clínica, ajudam a compreender que os fenômenos psicossomáticos são tentativas do sujeito de lidar com algo que não pode ser simbolizado. Na clínica contemporânea, o analista se depara com o estresse, as pressões sociais e as demandas de perfeição corporal (superego) que impactam o corpo do sujeito. O analista deve auxiliar a construção de uma narrativa que dê sentido ao sofrimento corporal, permitindo que o sujeito encontre outras vias de expressão.

Gonçalves (2022, Corpo e Clínica Psicanalítica) destaca o aumento de demandas clínicas em que o corpo se torna um meio de expressão do sofrimento psíquico. Propõe um mapeamento conceitual que articula o sinthoma em duas dimensões: a simbólica (como mensagem inconsciente, ecoando Freud e Lacan) e a pulsional (como modo de gozo ligado ao real).

Gonçalves (2022) enfatiza a necessidade de o analista reconhecer essas manifestações como paradigmáticas para reequacionar a clínica. Para ela, há a ideia de que o sofrimento corporal contemporâneo exige do analista uma escuta que vá para além do tradicional, considerando os impactos de contextos sociais traumáticos.

Entre a fina simbiose do psíquico e das manifestações somáticas esclarece Gonçalves:

É sabido que implicações psíquicas podem acarretar o surgimento e a permanência de manifestações somáticas, porém Freud (1905b) ao indicar a mútua relação entre o psíquico e o somático salienta que o somático também é capaz de afetar o psíquico. Assim, sendo, uma doença orgânica, por exemplo, pode acarretar reações psicopatológicas significativas. Não é diferente com as repercussões da dor física sobre o psíquico, tal como ele demonstrou no texto sobre o narcisismo que nos leva a crer que a dor é um dos destinos da pulsão. (Gonçalves, 2022, p.113)

 

Em contextos contemporâneos marcados por novas formas de sofrimento corporal (transtornos psicossomáticos, modificações corporais, questões de gênero), o analista deve olhar para o corpo como um lugar onde o inconsciente se inscreve (escuta do corpo). A função do analista caminha no sentido de trabalhar para que o sujeito possa se relacionar de forma menos dolorida com o gozo e transformar o sinthoma em algo que o sustente (sustentar o gozo e o sinthoma). As redes sociais, padrões de beleza e medicalização colocam o corpo sob intensa pressão social, e o analista deve considerar como essas demandas afetam a subjetividade e se manifestam no corpo, ajudando o sujeito a se posicionar frente a elas.

O analista não impõe soluções, mas opera como um suporte para que o sujeito descubra seu próprio caminho em relação ao corpo e à subjetividade, respeitando a singularidade de cada um.

No contexto do ensino de Lacan, os já mencionados Seminários 5, 20 e 23 indicam que o corpo é um campo de inscrição do inconsciente, atravessado pelo gozo e pelo sinthoma. Gonçalves (2022) complementa ao apontar o sinthoma enquanto acontecimento do corpo e uma resposta singular a desamparos ou traumas, muitas vezes agravados pela contemporaneidade (pressões sociais, pandemia etc.). Gonçalves destaca a influência de ambientes da cultura digital não empáticos e que exige do analista considerar como essas dinâmicas afetam a subjetividade corporal.

Entre os casos clássicos de Freud, o caso Dora (Ida Bauer) é particularmente relevante para as reflexões sobre o corpo e a subjetividade na clínica lacaniana contemporânea. Dora apresenta sintomas corporais que expressam conflitos inconscientes, e sua análise por Freud ilustra a relação entre o corpo, a subjetividade e o papel do analista, ecoando os conceitos lacanianos discutidos até aqui.

Dora apresenta sintomas corporais (tosse nervosa, afonia) que Freud interpreta como expressões de conflitos inconscientes. Na atualidade, sintomas corporais como os de Dora podem ser comparados a fenômenos psicossomáticos ou transtornos que o analista deve decifrar, depois de excluída a possibilidade de causas orgânicas. A tosse de Dora pode ser lida como uma manifestação de gozo, um excesso que se aloja no corpo e que Dora não consegue simbolizar plenamente. Embora Freud não use o termo “sinthoma” (Lacan, 2007), a tosse de Dora funciona como um mecanismo que a sustenta frente a seus conflitos, como a relação com o pai e os desejos reprimidos.

O caso Dora em Fragmento da Análise de um Caso de Histeria”, publicado por Freud em 1905. Nas palavras de Freud:

Sem dúvida este caso clínico, tal como esbocei até agora, não perece em seu conjunto digno de ser comunicado. Trata-se de uma “petite hystérie” com os mais comuns de todos os sintomas somáticos e psíquicos: dispneia, tussis nervosa, afonia e possivelmente enxaquecas, junto com depressão, insociabilidade histérica e um taedium vitae que provavelmente não era muito levado a sério. (Freud, 1996 [1905], p. 33)

 

Dora vive em um contexto repressivo, a Viena do início do século XX, onde seu corpo expressa o que ela não pode dizer, muito semelhante aos fenômenos psicossomáticos discutidos na atualidade. Na atualidade, as pressões sociais, ideias de beleza e cultura digital também geram sintomas corporais, como aponta Gonçalves (2022).

Freud, ao analisar Dora, tenta interpretar os sintomas corporais, mas sua abordagem esbarra em uma transferência mal manejada. Lacan enfatiza a importância de o analista sustentar a escuta e trabalhar com a transferência sem impor interpretações. O próprio Freud, em seu Posfácio do caso Dora avalia uma transferência mal manejada:

Fui obrigado a falar de transferência porque somente através desse fator pude esclarecer as particularidades da análise de Dora. O que constitui seu grande mérito e que a fez parecer adequada para uma primeira publicação introdutória, a saber, sua transferência incomum, está intimamente ligado a seu grande defeito, que levou a sua interrupção prematura. Não consegui dominar a tempo a transferência; graças à solicitude com que Dora punha à minha disposição no tratamento uma parte do material patogênico, esqueci a precaução de estar atento aos primeiros sinais de transferência que se preservava com outra parte do mesmo material, ainda ignorada por mim. (Freud, 1996 [1905], p. 112- 113; grifo nosso)

 

Georges Bataille (1897-1962) foi um pensador que dialogou profundamente com a psicanálise. Suas ideias sobre o excesso, o erotismo e a transgressão ressoam com os conceitos lacanianos discutidos nos seminários mencionados, e sua vida e obra podem ser analisadas sob a perspectiva da clínica contemporânea.

Bataille (2023) explorou intensamente a relação entre o corpo e o excesso em suas obras, como em O Erotismo (1957), onde discute o corpo como um campo de experiência do limite. Para Bataille, o corpo é o lugar onde se experimenta o que está para além da utilidade ou da razão. Ele, com sua obsessão pelo excesso, exemplifica um sujeito que viveu intensamente essa relação. O analista contemporâneo deve ajudar o sujeito a articular esse gozo, sem eliminá-lo, permitindo que o sujeito encontre formas menos destrutivas de expressão.

Bataille entende o corpo como o lugar de ruptura que escapa à linguagem, o que dialoga com a ideia de Lacan (1999, Seminário 5) de que o inconsciente se manifesta no corpo por meio de formações como o sintoma. Na clínica contemporânea, o analista deve escutar essas manifestações corporais (psicossomática, transtornos corporais etc.) como mensagens do inconsciente, algo que Bataille exemplifica com sua própria vida, marcada por sintomas físicos (angústia, insônia etc.) que refletiam conflitos internos.

O “excesso” que Bataille descreve pode ser lido como um sinthoma, uma forma de lidar com o que é “insuportável” em sua subjetividade. No Seminário 23 (2007), Lacan propõe que o sinthoma é uma intervenção singular que sustenta o sujeito, e Bataille encontrou na escrita e na transgressão uma forma de se sustentar. Na clínica contemporânea, o analista trabalha para que o sujeito transforme seu sinthoma em algo que o sustente de maneira menos sofrida.

Bataille conecta o corpo ao “íntimo e insuportável”, o que ressoa com os fenômenos psicossomáticos discutidos em Psicanálise e Psicossomática (Soares et al., 2015) – o corpo como resposta a algo que não pode ser simbolizado. Na atualidade, como Gonçalves (2022) aponta em Corpo e Clínica Psicanalítica, o corpo reflete desamparos e traumas sociais (pressões da cultura digital), e Bataille, vivendo em um “contexto de pós-guerra”, também teve seu corpo marcado pelas tensões de seu tempo.

Com Bataille (2023) podemos refletir que o erotismo é uma atividade que rompe os limites da subjetividade, levando o corpo a uma experiência de dissolução que pode se transforme em sofrimento. Essa tensão, se não for acolhida, pode se converter em uma doença ou em mal-estar físico que o sujeito não explica.

 

Considerações finais

A clínica psicanalítica contemporânea, sob a perspectiva de Lacan e com base nos livros analisados, revela o corpo como um campo onde se inscreve o inconsciente, o gozo e o sinthoma, refletindo a complexa relação com a subjetividade. É possível pensar que fenômenos como a psicossomática, automutilações e práticas corporais extremas são expressões do sujeito frente a desamparos modernos como pressões sociais e traumas. O analista, nesse contexto, deve “escutar o corpo” decifrando suas mensagens e ajudando o sujeito a ressignificar seu sofrimento.

 

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.

FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. VII.

GONÇALVES, Gesianni Amaral. Corpo e clínica psicanalítica: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2022.

GONÇALVES, Gesianni Amaral. Da linguagem ao corpo: litorais. 2024. Disciplina (online) ministrada no Curso de Pós-graduação: Clínica Psicanalítica Lacaniana, ESPE.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Vera Ribeiro; revisão de Marcus André Vieira. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de M. D. Magno. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sergio Laia; revisão de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

SOARES, Ana Maria [et al.] (Org.). Psicanálise e psicossomática: casos clínicos, construções. São Paulo: Escuta, 2015.

 



[1] “Vários autores apontam para a importância da função mediadora da psicossomática psicanalítica na promoção do diálogo entre a clínica médica e a psicanalítica, potencializando o espaço da interdisciplinariedade. Convidando o médico a sintonizar com o valor da rede simbólica e representativa do paciente e suas implicações na organização e desorganizações do psicossoma, psicossomática psicanalítica amplia sua capacidade de escuta, de compreensão etiológica dos sintomas e as possibilidades de intervenção na prática médica. (Soares, et.al., 2015, p.18)

O RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA: COMO ESTAS BALIZAS INFLUENCIAM A PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN

O RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA: COMO ESTAS BALIZAS INFLUENCIAM A PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN

 Isabel Perides

RESUMO

O artigo examina a contribuição de Jacques Lacan para a psicanálise, enfatizando seu apelo por um “retorno a Freud.” Lacan argumentava que a psicanálise pós-freudiana se desviou dos princípios fundamentais de Freud, adotando uma visão reducionista e adaptativa que negligenciava a importância da linguagem e do inconsciente. As principais críticas de Lacan à psicanálise pós-freudiana incluem: enrijecimento da técnica, negligência da linguagem, hipertrofia da função do imaginário, ênfase excessiva na contratransferência, modelo adaptativo e fortalecimento egóico. Lacan defende uma psicanálise que promova a transformação subjetiva e a liberdade, em vez de apenas adaptá-la às normas sociais. O artigo também discute a influência da psicanálise lacaniana no Brasil após 1970.

 

PALAVRAS-CHAVE: retorno a Freud, linguagem, técnica psicanalítica e psicanálise no Brasil.

 

O RETORNO A FREUD E AS DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS DA CLÍNICA LACANIANA

Jacques Lacan emerge no cenário psicanalítico em um momento de transição, marcado pela crescente influência da Escola Kleiniana. Contemporâneo de Freud, Lacan, apesar da proximidade temporal, não integrou o círculo íntimo de Freud durante os últimos anos de vida do fundador da psicanálise. Lacan propõe um retorno ao Complexo de Édipo, porém com uma releitura que enfatiza a importância da função fraterna, argumentando que a formulação clássica edipiana não aborda a dimensão do fraterno na constituição psíquica do sujeito. Posteriormente, Lacan formula o Estádio do Espelho como elemento crucial na construção do EU, inaugurando uma nova perspectiva sobre a formulação da identidade e da subjetividade. Essa ênfase na função fraterna e a posterior elaboração do Estádio do Espelho marcam o início da trajetória de Lacan no campo psicanalítico, no qual retorna as bases freudianas, mas reinterpreta e a complexifica a partir de um diálogo com outras áreas do conhecimento, como a linguística e a filosofia.

Jacques Lacan direciona críticas à psicanálise pós-freudiana, as quais justificam a necessidade de um retorno a Freud. As principais problemáticas identificadas por Lacan são: enrijecimento da técnica, perda da crítica de conceitos e procedimentos, aversão pelo campo da linguagem, hipertrofia da função do imaginário e o papel da contratransferência.

Essas críticas de Lacan à psicanálise pós-freudiana evidenciam seu esforço em reorientar a psicanálise em direção aos seus fundamentos, revitalizando o legado freudiano e promovendo um retorno teórico e clínico.

A década de 1930 presencia a ascensão da influência kleiniana na Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Em contraponto, a partir da década de 1950, Jacques Lacan inicia um período de intensa crítica à instituição, culminando em profundo desacordo. É nesse contexto que, em 1953, publica “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”, texto no qual questiona o enrijecimento da técnica psicanalítica. Para Lacan, essa padronização esvazia a função do analista, substituindo-a por uma série de procedimentos protocolares que limitam a singularidade do tratamento e a escuta do sujeito.

No Seminário 3, "As Psicoses", Lacan postula que a compreensão precipitada do analisando constitui uma forma de violência, pois a elaboração de estratégias terapêuticas eficazes requer tempo e uma análise cuidadosa dos elementos e táticas disponíveis. O retorno a Freud proposto por Lacan se justifica pelo enrijecimento teórico da psicanálise pós-freudiana, a qual, em contraste com a postura aberta e autocrítica de Freud, demonstrou resistência à revisão e atualização de seus preceitos. As inúmeras notas de rodapé presentes nos textos freudianos evidenciam sua constante busca por aprimoramento e reformulação de suas ideias. Nesse sentido, Lacan se mantém fiel ao espírito de Freud ao defender a revisão crítica e contínua dos conceitos psicanalíticos, o que implica, paradoxalmente, em uma possível "infidelidade" ao texto freudiano, na medida em que a fidelidade ao movimento do pensamento exige questionamento e até mesmo oposição às formulações originais, quando necessário.

A psicanálise pós-freudiana desviou-se do cerne da descoberta freudiana, ignorando o papel fundamental da palavra e privilegiando abordagens como o reducionismo biológico e o modelo biopsicossocial. No Seminário 1, Lacan destaca a importância do "efeito" da palavra sobre a história e o corpo, retomando a ênfase freudiana na linguagem como elemento central na constituição do sujeito e na dinâmica do inconsciente. Para Lacan, o psicanalista deve aprofundar seus conhecimentos sobre as funções da linguagem, buscando o domínio da fala e aprimorando suas habilidades de escuta. Nesse sentido, Lacan revisita obras essenciais de Freud, como "A Interpretação dos Sonhos", "O Inconsciente" e "Psicopatologia da Vida Cotidiana", a fim de fundamentar a importância da linguagem na teoria e na prática psicanalíticas.

Lacan critica a psicanálise de sua época por sua tendência à rigidez e dogmatismo, evidenciada na cristalização de textos e conceitos tidos como inquestionáveis. Para ele, essa postura transformava a psicanálise em um instrumento de dominação, distanciando-a de sua função original de promover a liberdade do sujeito. Nesse contexto, o retorno a Freud proposto por Lacan representa um esforço para recuperar a essência crítica e subversiva da psicanálise. Ao analisar a Psicologia do Ego e o uso da contratransferência, Lacan adverte sobre o risco de o ego do analista interferir no processo analítico, obstaculizando o desenvolvimento do analisando. Quando o "eu" do analista se manifesta na análise, o "eu" do analisando pode ser ofuscado, impedindo a emergência do sujeito e a elaboração de seus sintomas.

 

MOTIVOS DO SENTIDO DO RETORNO A FREUD POR LACAN:

1) Desbiologização e desnaturalização da psicanálise:

Um dos motivos que impulsionaram o retorno a Freud por Lacan reside na necessidade de uma desbiologização e desnaturalização da psicanálise. Lacan se opõe à tendência, presente na psicanálise pós-freudiana, de reduzir a experiência humana a seus aspectos biológicos e instintivos, negligenciando a dimensão simbólica e linguística que a constitui. Para realizar essa desbiologização, Lacan resgata a noção de falta na obra de Freud, conferindo-lhe um papel central em sua releitura da psicanálise. Embora Freud tenha explorado a falta em diversos momentos de sua obra, Lacan a sistematiza e a torna um conceito fundamental para a compreensão da subjetividade.

2) Oposição a um modelo adaptativo da psicanálise:

Em contraposição a uma visão da psicanálise como um método adaptativo, que visa integrar o indivíduo às normas e expectativas sociais, Lacan recupera a concepção freudiana de uma psicanálise subversiva, que questiona os modos de vida estabelecidos e promove a transformação subjetiva. Freud, desde seus primeiros escritos, concebia a psicanálise como um instrumento de ruptura com as convenções e moral vigentes, propondo uma análise crítica dos mecanismos de repressão e alienação que impedem o sujeito de realizar seus desejos e potencialidades. A psicanálise, portanto, não se limita a adaptar o indivíduo à realidade social, mas busca transformar essa realidade através da liberação do sujeito das amarras do inconsciente e das normas sociais restritivas.

3) Uma psicanálise para além do modelo do fortalecimento egóico:

Superando a perspectiva de uma psicanálise voltada ao fortalecimento do ego, Lacan retoma a concepção freudiana de um ego em constante embate com as forças do id, reconhecendo o caráter perturbador e "nocivo" do inconsciente. Para Freud, não se trata de ignorar ou reprimir as manifestações do inconsciente, mas de enfrentá-las e elaborá-las, como expressa na frase "não há fuga para o que ataca de dentro". Lacan, por sua vez, radicaliza essa perspectiva, argumentando que o inconsciente, apesar de seu caráter desconcertante, contém uma verdade singular do sujeito, que precisa ser escutada e integrada à sua experiência. O objetivo da análise, portanto, não se reduz ao fortalecimento do ego, mas à construção de um estilo próprio, que incorpore a "estranheza" do sujeito, mesmo que ela seja disruptiva e conteste as normas estabelecidas.

4) O reposicionamento da técnica da interpretação (da complementação de lacunas e da ressignificação para um questionamento épico sobre o desejo)

Em contraste com a ideia de "ressignificar a própria história", frequentemente associada a abordagens terapêuticas que buscam reinterpretar o passado, a orientação lacaniana propõe uma análise que se concentra na verdade do sujeito, tal como ela se apresenta no presente. A ênfase recai sobre a escuta do discurso do paciente e a compreensão da estrutura que sustenta seus sintomas, sem recorrer a reinterpretações ou reconstruções históricas. Essa postura se diferencia da busca por ressignificação, na medida em que prioriza a análise do presente e a compreensão da dinâmica inconsciente que se manifesta no discurso e nas ações do sujeito. O objetivo não é reescrever o passado, mas desvelar a lógica que o estrutura e seus efeitos no presente.

5) Introdução de uma concepção refinada do sujeito 

Lacan concebe o inconsciente como pertencente à ordem do não realizado, ou seja, como um conjunto de significantes que não se integram plenamente à consciência e se manifestam de forma distorcida nos sonhos, atos falhos e sintomas. Nessa perspectiva, a clínica psicanalítica não visa a uma rememoração completa do passado, como se a simples recordação de um evento traumático fosse suficiente para eliminar o sintoma. Tal concepção, frequentemente associada à psicanálise, constitui um equívoco, pois ignora a complexidade da dinâmica inconsciente.

Na clínica lacaniana, a mudança não ocorre por meio de um "ato heroico" de rememoração, mas sim de forma gradual e contínua, à medida que o sujeito se depara com as manifestações do seu inconsciente no discurso. A análise não se resume à busca por uma "verdade escondida", mas à construção de um novo modo de relação com a própria história e com o desejo.

COMO ESTAS BALIZAS INFLUENCIAM A PSICANÁLISE NO BRASIL DEPOIS DE LACAN

A psicanálise no Brasil após 1970: Depois de Lacan

Desde Freud, os laços começaram a se estabelecer com os jovens médicos interessados em psicanálise. E no Brasil não foi diferente. O pensamento psicanalítico começa a tomar vulto no Brasil não só pela inserção do pensamento lacaniano, mas, também pela chegada dos psicanalistas argentinos exilados pela ditadura militar: “[...] contrários ao regime, diferentemente dos psicanalistas brasileiros que, em grande maioria, mostravam-se neutros, apolíticos ou, pior ainda, em alguns casos a serviço da ditadura militar que por aqui imperava.” (Santos, 2019, p. 79-81)

Segundo Marco Antônio Coutinho Jorge (apud Santos, 2019, p.81) quando a psicanálise lacaniana chega ao Brasil o cenário é bem parecido com aquele encontrado na França por Lacan na década de 1950, quando então propõe um retorno a Freud e a desbiologização da psicanálise promovida pela IPA. Havendo, previsivelmente, reações contrárias a renovação da psicanálise, os mais antigos e de outras orientações teóricas, consideravam a psicanálise lacaniana “[...] esses jovens lacanianos que surgiam como irresponsáveis, além de perigosamente desrespeitosos com a tradição vigente e, em última instância, destruidores da psicanálise”. Outro elemento importante da renovação foi a presença desses jovens lacanianos em programas de rádio, televisão e participação em atividades acadêmicas e congressos. (Santos, 2019, p. 81-82)

No Brasil, a psicanálise lacaniana, propõe uma renovação e uma visível abertura para o acesso a um maior número de pessoas à psicanálise, quer seja como analisando, quer seja como analista.

Santos (2019, p. 90) conclui que a década de 1970 a psicanálise no Brasil depois de Lacan marca uma década que coloca fim à hegemonia de uma Psicanálise única, ditada pela IPA e sua representante oficial no Brasil, a Sociedade Brasileira de Psicanálise, como seu modo quase que inflexível de concepção de formação, acesso e, em especial, o reconhecimento daqueles que poderiam ser chamados de psicanalistas. Para Santos (2019, p. 125), a proposta lacaniana, em 1970, chega ao Brasil como forma de tornar a psicanálise um pouco mais acessível.

CONCLUSÃO

Jacques Lacan em seu retorno a Freud revitalizou a psicanálise ao enfatizar a importância da linguagem e do simbólico na constituição do sujeito. Lacan criticou a psicanálise pós-freudiana por sua tendência à biologização, ao reducionismo adaptativo e à hipertrofia do imaginário, desviando-se do foco original na linguagem e no inconsciente. Ele resgatou a dimensão ética e subversiva da psicanálise, promovendo a liberdade do sujeito em detrimento da mera adaptação social. No Brasil, a influência de Lacan democratizou o acesso à psicanálise, desafiando a hegemonia da IPA e promovendo uma maior abertura teórica e clínica. O "retorno a Freud" proposto por Lacan continua a inspirar e desafiar psicanalistas em todo o mundo, garantindo a vitalidade e a relevância da psicanálise no século XXI

REFERÊNCIAS

 

FREUD, S. Obras Completas, v.4. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

______, S. Obras Completas, v.5. Psicopatologia da vida cotidiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 

______, S. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1985.

JORGE, M. A. C. Jacques Lacan e a renovação da clínica psicanalítica. Sobre o impacto de seu ensino no Brasil. In: JORGE, M.A.C. (org.) Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, p.195-204. 

LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.

LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

MILLAN, B. Difusão da psicanálise lacaniana no Brasil. Disponível em:<http://www2.uol.com.br/bettymilan/entrevistas/28-difusao.htm>. Acesso em 23 de fev. 2014.

RAVANELLO, T. Módulo I – Disciplina: Freud com Lacan, Lacan com Freud. Aulas: 16 e 17 de agosto de 2014 e 27 e 28 de setembro de 2024. Clínica Psicanalítica Lacaniana (Turma online 1). Londrina: Instituto Espe, 2024.

SANTOS, L. dos. A psicanálise no Brasil: antes e depois de Lacan. Posições do Psicanalista nessa história. São Paulo: Editora Zagodoni, 2019.

 

 




A Segunda Tópica Freudiana: Uma Releitura da Estrutura do Aparelho Psíquico

 

A Segunda Tópica Freudiana: Uma Releitura da Estrutura do Aparelho Psíquico

                                                                                                     Isabel Perides

  

RESUMO

A aula oferece uma análise da segunda tópica freudiana, um marco na teoria psicanalítica. Ao revisitar os conceitos de ego, id e superego, o professor traça um panorama detalhado das dinâmicas psíquicas e suas implicações clínicas. Um dos pontos fortes foi a ênfase na intencionalidade do ego. Diferentemente da primeira tópica, que priorizava o jogo de forças inconscientes, a segunda tópica coloca o ego como protagonista na tomada de decisões, responsável por mobilizar os mecanismos de defesa e mediar as demandas do id, do superego e da realidade externa. Essa mudança de perspectiva confere ao ego um papel mais ativo e consciente na vida psíquica, abrindo novas possibilidades para a compreensão e intervenção clínica. Outro aspecto relevante é a discussão sobre a formação do superego. O professor destaca a importância das identificações e do Complexo de Édipo na internalização de valores e normas sociais, ressaltando a complexidade desse processo e suas implicações na constituição da consciência moral. A crítica à ideia de um superego ligado à tradição de forma obrigatória abre espaço para uma reflexão sobre a diversidade de valores e a importância da singularidade do sujeito. A análise do id como "caldeirão fervilhante das pulsões" é instigante e revela a força motriz do inconsciente. O professor destaca a importância do ego em mediar as demandas do id e da realidade externa, evitando a realização de desejos que possam colocar em risco a integridade do sujeito. A discussão sobre a angústia como sinal de alerta para o ego mobilizar suas defesas é fundamental para a compreensão da dinâmica psíquica e sua relação com o sofrimento psíquico. A aula buscou a compreensão da segunda tópica freudiana, destacando a importância da intencionalidade do ego, da formação do superego e da dinâmica entre id, ego e superego.

 

PALAVRAS-CHAVE: segunda tópica freudiana, ego, id e superego

 

A Segunda Tópica Freudiana

A segunda tópica freudiana, o modelo estrutural da mente, é composta de três instâncias psíquicas: id, ego e superego. Freud discute a segunda tópica em diversas obras, sendo as principais:

v  O Ego e o Id (1923), nesta obra Freud introduz formalmente a segunda tópica e descreve as características e funções do id, ego e superego. Ele explora a dinâmica entre essas instâncias e como elas influenciam o comportamento humano.

v  Inibição, sintoma e angústia (1926), neste texto Freud aprofunda a discussão sobre o ego e sua relação com a angústia. Ele explora os mecanismos de defesa do ego e como eles são utilizados para lidar com a ansiedade e os conflitos internos.

v  Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1933), nesta obra, Freud retoma a discussão sobre a segunda tópica e a apresenta de forma mais acessível e didática. Discute a importância do modelo estrutural para a compreensão da mente humana e sua aplicação na clínica psicanalítica.

Além dessas obras principais, a segunda tópica também é abordada em outros textos de Freud, como “A dissecção da personalidade psíquica.” (1933) e “Esboço da psicanálise” (1940). É importante ressaltar que a segunda tópica não substitui a primeira tópica (consciente, pré-consciente e inconsciente), mas a complementa. Ambas as tópicas são fundamentais para a compreensão do funcionamento do aparelho psíquico.

Uma nova divisão do aparelho psíquico: ego, id e superego

Para Ravanello (2024) a segunda tópica começa a ser pensada por Freud em torno da noção do EU. Segundo ele, na primeira tópica os elementos dos mecanismos de defesa ou o modo através dos quais os mecanismos de defesa são acionados fica na consideração de uma espécie de jogo de forças, processos em conflito que levariam uma determinada ideia na disputa entre de um lado a ser realizado e de outro os aspectos ético, estéticos e morais a serem cumpridos. O que definiria nesse conflito que uma ideia fosse recalcada ou não.

A segunda tópica não excluí a primeira tópica. Na primeira tópica Freud vai pensar em uma complexidade do aparelho psíquico, mas na medida em que a clínica vai se desenvolvendo, em número de atendimentos, em número de psicanalistas e são atravessados por acontecimentos como a Primeira Guerra Mundial, a Gripe Espanhola, o desenvolvimento tecnológico Freud sente a necessidade de pensar um modelo ainda mais complexo que é a subjetividade. (RAVANELLO, 2024)

Nas palavras de Quinodoz (2024, p. 225):

O ego e o id é uma obra particularmente importante porque nela Freud apresenta uma síntese das hipóteses levantadas na “guinada dos anos de 1920”. Ele começa por demonstrar que o primeiro modelo de divisão do psiquismo em inconsciente, pré-consciente e consciente – conhecido pelo nome de “primeira tópica” (divisão topográfica do psiquismo) – já não é suficiente para dar conta do funcionamento psíquico, e que é preciso ampliá-lo. Partindo das resistências que o “ego” do indivíduo põe à tomada de consciência durante a cura, Freud introduz uma nova divisão do psiquismo em três instâncias, o ego, o id e o superego, modelo conhecido pelo nome de “segunda tópica”. Esses dois modelos não são excludentes, ao contrário, são complementares no sentido de que descrevem os fenômenos psíquicos sob ângulos diferentes, do mesmo modo que se pode descrever uma casa em termos de forma, de dimensão ou de custo.


Na segunda tópica, Freud reposiciona a intencionalidade ao estabelecer o ego como a origem dos mecanismos de defesa. O recalque de uma ideia não é mais visto como um mero conflito de forças, mas como uma decisão intencional do ego pré-consciente. Esse ego pré-consciente também direciona formas deslocadas de investimento (transferência) para o analista, e tem a capacidade de tomar decisões sobre o material que surge na análise. Ele pode permitir a entrada de certos conteúdos, condená-los ou aceitá-los. Com isso, a análise deixa de ser um simples jogo de forças desencarnadas e passa a ser um campo ético de decisões do ego sobre os rumos do desejo. As saídas da análise - juízo de condenação, juízo de aceitação e sublimação - refletem essa dimensão ética da experiência analítica. (RAVANELLO, 2024)

Para Freud, a capacidade do ego de se tornar objeto de observação leva a uma divisão não apenas em sua função, mas também em sua subjetividade. A possibilidade de ser avaliado e observado cria a instância do superego, que permite ao ego ser julgado, amado, odiado e questionado com base em ideais, identificações e projeções. Simultaneamente, o ego pode se dividir e manifestar sintomas através dos mecanismos de defesa. No entanto, essa clivagem do ego segue padrões pré-determinados por sua própria estrutura. Em outras palavras, a forma como o ego se fragmenta e se defende é condicionada por sua própria estrutura. (RAVANELLO, 2024)

Nas palavras de Ravanello (2024):

Freud vai definir o superego justamente como uma função de observação. A capacidade que eu tenho de observar meu próprio eu, esse desdobramento que eu faço no âmbito da ação é o que resulta a constituição do superego. Então esse superego ele pode observar o ego e ele pode também ser projetado, ou ele pode ser alienado, quando um analisando diz que considera que se ele tomar determinada ação as pessoas o julgarão, significa muito provavelmente que ele está fazendo um processo de projeção de seu superego, ou seja, esse superego o está observando de fora.

Como vai se dar a formação desse super eu ? Freud vai apontar que o ego ele vai se constituir a partir da diferença que o id vai estabelecer com o mundo externo. O id seria o originário da experiência humana, o id seria o inconsciente em seu estado bruto, o ego vai se diferenciando com o mundo externo, ele vai assimilando aspectos de identidade a partir de processos de troca e de identificação. Já o superego ele vai ter como base a identificação o que seria essa consciência moral (que é o conjunto de identificações com valores, com aspectos estéticos, com aspectos morais que tem a ver com a tradição, com as formas de vida, com as formas de contato, elementos políticos, elementos sociais, elementos econômicos, o superego se constitui como consciência moral a partir de um processo ou procedimento de aglutinação - Freud vai equiparar a um processo canibalístico. 

 

O superego, além de observar o Ego, também o avalia. Duas funções são importantes nesse processo: a primeira é a do "eu ideal", uma captura imaginária de si mesmo, que pode se transformar ao longo do tempo. A segunda é a do "ideal do eu", que se relaciona aos critérios simbólicos (não imaginários) que usamos para nos avaliar. Se o ideal do eu for muito difícil de alcançar, a avaliação do superego sobre o eu ideal será mais severa, o que pode impulsionar projetos mais elaborados e socialmente relevantes. Em "Psicologia das massas e análise do eu", Freud explora como a idealização do eu pode ser usada para manipulação social. Quanto mais inalcançável o ideal, mais nos dedicamos cegamente a ele, o que pode ser a base para regimes totalitários. Para Freud, o ideal do eu não é inato, mas se constrói individualmente, sem um modelo universal a ser seguido. A análise deve considerar a particularidade de cada indivíduo e não buscar um padrão de subjetividade ideal. (RAVANELLO, 2024)

A origem do superego se dá por dois fatores: um biológico, a dependência prolongada do ser humano, e outro psicológico, a experiência particular do Complexo de Édipo. O superego atua como um veículo da tradição ao impor o ideal do eu, que é internalizado a partir da figura paterna. No entanto, a transmissão de valores não é obrigatória, pois os filhos podem não assimilá-los. O superego representa a tradição, mas também uma alteridade que não precisa ser integrada ao eu, exercendo um papel de julgamento, avaliação e questionamento. Portanto, não se pode falar em um superego ligado à tradição de forma obrigatória. A identificação e a escolha objetal, segundo Freud, são processos paralelos e independentes, não necessariamente correlacionados ou obrigatoriamente conectados. (RAVANELLO, 2024)

Para Freud, o Id, ou Isso, é a parte inacessível da personalidade, o que torna a análise, em certa medida, interminável. O id está ligado ao corpo biológico, e Freud busca compreender como a subjetividade pode afetar o corpo. Na segunda tópica, as pulsões, que antes eram externas ao aparelho psíquico, passam a fazer parte do id, descrito por Freud como um "caldeirão fervilhante de pulsões". O id é cheio de intenções, mas desordenado, e segue o princípio do prazer, ignorando a realidade externa e os valores sociais. Ele é a força motriz do gozo, impulsionando o ego a buscar objetos, relacionamentos e a realidade para satisfazer seus desejos. O ego, por sua vez, apresenta o mundo ao id e o limita. Ele serve a três "senhores tirânicos": o id, com sua busca pelo prazer; o superego, com suas avaliações e imposições morais, éticas e estéticas; e a realidade externa, com suas demandas sociais e os interesses dos outros. (RAVANELLO, 2024)

Nas palavras de Ravanello (2024):

O id não exerce o teste de realidade e não corresponde como recalcado. Tudo o que é recalcado se torna inconsciente, mas não se torna id.

O ego além de representar a realidade para o id ele vai ser a cede dos mecanismos de defesa, e também responsável pelo que Freud vai chamar de “teste de realidade” (o ego vai verificar na realidade se há condições para a realização do desejo”, ex. Isso é possível? Isso me coloca em risco?)

O ego serve ao id fazendo ponto a realidade, mas o id serve ao ego no sentido de lhe dotar potência para dar oportunidade a realizações. Na segunda tópica: ansiedade e angústia para Freud é uma ruptura da fragmentação do eu, ou fracasso dos mecanismos de defesa exercidos pelo eu.

Na primeira tópica a angústia é uma espécie de reflexo do recalque, na medida que a ideia foi recalcada, mas a intensidade está livre no aparelho psíquico, a intensidade indicaria a presença da angústia livre de qualidades sem elaboração e características ideacionais; Freud na segunda tópica vai pensar que a angústia seria uma pequena liberação de intensidade que indicariam ao ego a necessidade de mobilizar suas defesa, pois o recalque está prestes a se romper.

  

Ravanello,  conclui que a angústia não é sem objeto, que a angústia é um afeto que não engana e que há algo na angústia e ansiedade que precisamos aprender a escutar (Lacan, Seminário 10). Para ele, as nossas angústias e ansiedades precisam ser escutadas. Não bastando uma pílula para reprimi-las. “É preciso escutá-las, pois elas falam do mais íntimo dos nossos processos de divisão e de fratura e de ruptura; à questão é que escutar isso é de uma ordem que comporta uma força que nem sempre estamos dispostos a ouvir e encarar e elaborar.” 

Conclusão

A aula de Ravanello (2024) sobre a segunda tópica freudiana adquire relevância na sociedade contemporânea, especialmente no contexto das mídias digitais, devido à sua ênfase na formação do superego e na dinâmica entre o ego, o id e o superego. As mídias digitais, com sua exposição constante a imagens idealizadas e padrões de sucesso muitas vezes inatingíveis, podem intensificar a pressão do superego sobre o ego, levando a sentimentos de inadequação, ansiedade e angústia.

A compreensão da segunda tópica freudiana pode ajudar a sociedade a entender como esses mecanismos psíquicos operam e como a idealização promovida pelas mídias digitais pode impactar a saúde mental. Ao reconhecer a importância da escuta da angústia e da busca por “um ideal de eu” mais realista e individualizado, a psicanálise oferece ferramentas para lidar com os desafios impostos pela cultura digital. Além disso, a crítica de Ravanello à visão tradicional da formação do superego, baseada na internalização da figura paterna, abre espaço para uma discussão mais ampla sobre a influência de diferentes agentes sociais na construção da moralidade e dos valores. Em uma sociedade cada vez mais diversa e plural, essa reflexão é fundamental para promover o respeito às diferenças.

REFERÊNCIAS

QUINODOZ, Jean-Michel. Ler Freud: Guia de leitura da obra de S. Freud. Tradução: Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2007

RAVANELLO. Tiago. Aula: Segunda Tópica Lacaniana.  Módulo de Ambientação: Tópicos introdutórios à Clínica Lacaniana. Pós-graduação: Clínica Psicanalítica Lacaniana. Instituto Espe: Londrina, 2024.