O afluente
secreto!
Às vezes, a dor do recalque é tão imensa que
preferimos atravessar um rio cheio de piranhas a ter que encarar o
que está enterrado. Essa imagem me assaltou durante uma caminhada.
Freud nos diria que o ego se protege ao
empurrar para o inconsciente desejos ou memórias que ameaçam seu equilíbrio, um
clássico mecanismo de defesa. Mas a teoria de Lacan vai além, ecoando uma
verdade mais sutil: não há um encontro heroico com o objeto recalcado, nenhuma
vitória final onde tudo se resolve e se dissipa. Ele propõe que, no processo
analítico, nós simplesmente atravessamos. Passamos pelo objeto sem sempre
percebê-lo como tal, e as coisas mudam aos poucos, sessão após sessão.
Olho para minha própria trajetória: direito,
geografia, mestrado, doutorado, psicanálise, e quase vinte anos de estudos
filosóficos da Rosacruz. Vinte anos fugindo ou enfrentando? Talvez os dois.
Será que o objeto recalcado não é um monstro,
mas um grão que se transformou em pérola? Algo tão pequeno, como uma rejeição
na infância ou um desejo reprimido. Para Freud, estaria ligado às pulsões;
para Lacan, ao objeto a aquele vazio irredutível que nos move. Essa
dorzinha de fundo, ela nunca para, mas nos empurra. Se não fosse por esse
latejar constante, eu não teria ido tão longe.
O recalque, então, além de proteger o ego,
pode ser um motor torto. Um farol quebrado que aponta para a direção
errada, mas que ainda assim me faz seguir em frente, uma ideia que ressoa com a
subversão do sujeito em Lacan.
... apenas para fugir de algo
que, à primeira vista, parece tão pequeno. A força parece ser muito maior que o
objeto recalcado, mas Lacan me lembra que não se trata de dominá-lo, e sim de aprender
a viver com ele. E se um dia eu olhar para trás e disser "ah, foi só
isso", não fará diferença. O rio se tornou uma ponte.
Freud diria que os sintomas retornam em sonhos
ou lapsos. Lacan, que a análise tece uma rede para segurar esse vazio sem nome.
A travessia foi longa, e cada braçada, um novo passo. No fim, o rio me
ensinou que o que eu queria fugir era o que me guiava.
Isabel Perides
06 de setembro de 2025
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