O amor
entre a falta e a ideologia
Isabel
Perides
O amor contemporâneo é um
território de disputa entre o desejo subjetivo e a imposição ideológica.
Frequentemente, o que chamamos de "amor" é uma sintetize de fantasias
infantis e construções sociais que servem para maquiar uma verdade fundamental
da condição humana: a incompletude. Este texto busca refletir como a ideologia
molda nossas expectativas românticas e como a psicanálise e o pensamento
crítico oferecem caminhos para uma vivência amorosa mais autêntica e
menos performática.
Para Jacques Lacan, o amor é
estruturado sobre a "falta". O sujeito, ao amar, não oferece ao outro
uma completude, mas sim a sua própria carência. A frase "amar é dar o que
não se tem a alguém que não o quer" resume o desencontro inerente ao laço
amoroso. O amor que oferecemos nunca é exatamente o que o outro espera receber,
pois ambos os sujeitos estão presos em suas próprias fantasias inconscientes. A
fantasia não é uma mentira, a fantasia é a maneira pela qual enxergamos o
outro. Ela é perigosa quando se torna uma uma lente fixa e que limita a
alteridade do parceiro às nossas necessidades de validação.
Na filosofia, Marx e Engels e pensadores da Escola de Frankfurt, entendem que o sentimento é moldado pela base econômica da sociedade. Friedrich Engels aponta que o modelo de amor romântico burguês nasceu para garantir a transmissão de herança e o controle dos corpos. O amor, sob o capital, tende materializar a posse. Na lógica capitalista, transformamos o parceiro em um objeto de consumo. Esperamos um retorno sobre o investimento afetivo, e a frustração surge quando o outro não cumpre sua a tarefa de nos completar ou nos validar socialmente. A ideologia do romantismo funciona como o fetiche da mercadoria: ela oculta as relações reais de poder e fantasia o cotidiano com um misto de destino e magia. O ponto alto da reflexão é o desafio de desvincular o amor da aprovação social: o relacionamento precisa ser performado para ser considerado real?
Muitas vezes, deixamos de
vivenciar a plenitude de uma relação em sua beleza crua e cotidiana porque ela
não se encaixa nos padrões estéticos ou ideológicos da conhecida e vendida pela
cultura. O desejo de validação externa é, no fundo, um desejo de que o Grande
Outro, nas figuras representadas pela sociedade, nos diga que somos
"normais" e "bem-sucedidos" em todos os campos da nossa
existência.
Não é raro observar indivíduos
de alta capacidade intelectual que, embora compreendam as complexidades das
estruturas sociais, permanecem analfabetos emocionais em suas vidas privadas.
Isso ocorre porque a intelectualização pode servir como uma defesa contra a
vulnerabilidade da "falta". Filosofar sobre sobre a própria relação é
um exercício de entrega e reconhecimento da própria impotência.
A libertação não reside na
destruição da fantasia, o ser humano necessita de simbolismo para
desejar. Em minha experiência pessoal pude confirmar que atravessar a
fantasia significa: Aceitar que o outro não veio para nos completar, e sim para
caminhar ao lado de nossa solidão. Desconstruir a necessidade de validação e
reconhecimento externo e vivenciar a alegria e a felicidade do encontro.
Reconhecer que o amor é um exercício diário de descolonização, retirando-o da
esfera da posse e devolvendo-o à esfera da liberdade.
Ao abrirmos mão das caixinhas
ideológicas, permitimos que o amor se materialize em formas mais amplas,
generosas e, finalmente, reais.
Isabel Perides
(20 de dezembro de 2025)
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