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sábado, 20 de dezembro de 2025

O amor entre a falta e a ideologia

 

 O amor entre a falta e a ideologia 

Isabel Perides

 

O amor contemporâneo é um território de disputa entre o desejo subjetivo e a imposição ideológica. Frequentemente, o que chamamos de "amor" é uma sintetize de fantasias infantis e construções sociais que servem para maquiar uma verdade fundamental da condição humana: a incompletude. Este texto busca refletir como a ideologia molda nossas expectativas românticas e como a psicanálise e o pensamento crítico  oferecem caminhos para uma vivência amorosa mais autêntica e menos performática.

Para Jacques Lacan, o amor é estruturado sobre a "falta". O sujeito, ao amar, não oferece ao outro uma completude, mas sim a sua própria carência. A frase "amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer" resume o desencontro inerente ao laço amoroso. O amor que oferecemos nunca é exatamente o que o outro espera receber, pois ambos os sujeitos estão presos em suas próprias fantasias inconscientes. A fantasia não é uma mentira, a fantasia é a maneira pela qual enxergamos o outro. Ela é perigosa quando se torna uma uma lente fixa e que limita a alteridade do parceiro às nossas necessidades de validação.

Na filosofia, Marx e Engels e pensadores da Escola de Frankfurt, entendem que o sentimento  é moldado pela base econômica da sociedade. Friedrich Engels aponta que o modelo de amor romântico burguês nasceu para garantir a transmissão de herança e o controle dos corpos. O amor, sob o capital, tende materializar a posse. Na lógica capitalista, transformamos o parceiro em um objeto de consumo. Esperamos um retorno sobre o investimento afetivo, e a frustração surge quando o outro não cumpre sua a tarefa de nos completar ou nos validar socialmente. A ideologia do romantismo funciona como o fetiche da mercadoria: ela oculta as relações reais de poder e fantasia o cotidiano com um misto de destino e magia. O ponto alto da reflexão é o desafio de desvincular o amor da aprovação social: o relacionamento precisa ser performado para ser considerado real?

Muitas vezes, deixamos de vivenciar a plenitude de uma relação em sua beleza crua e cotidiana porque ela não se encaixa nos padrões estéticos ou ideológicos da conhecida e vendida pela cultura. O desejo de validação externa é, no fundo, um desejo de que o Grande Outro, nas figuras representadas pela sociedade,  nos diga que somos "normais" e "bem-sucedidos" em todos os campos da nossa existência. 

Não é raro observar indivíduos de alta capacidade intelectual que, embora compreendam as complexidades das estruturas sociais, permanecem analfabetos emocionais em suas vidas privadas. Isso ocorre porque a intelectualização pode servir como uma defesa contra a vulnerabilidade da "falta". Filosofar sobre sobre a própria relação é um exercício de entrega e reconhecimento da própria impotência.

A libertação não reside na destruição da fantasia, o ser humano necessita de simbolismo para desejar. Em minha experiência pessoal pude confirmar que atravessar a fantasia significa: Aceitar que o outro não veio para nos completar, e sim para caminhar ao lado de nossa solidão. Desconstruir a necessidade de validação e reconhecimento externo e vivenciar a alegria e a felicidade  do encontro. Reconhecer que o amor é um exercício diário de descolonização, retirando-o da esfera da posse e devolvendo-o à esfera da liberdade. 

Ao abrirmos mão das caixinhas ideológicas, permitimos que o amor se materialize em formas mais amplas, generosas e, finalmente, reais.


Isabel Perides 

(20 de dezembro de 2025) 

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